Árida: Blackland’s Awakening é imersão ao sertão baiano de Canudos

Diego Souza Carlos
8 min readJul 13, 2020

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Game é desenvolvido pelo estúdio Aoca Game Lab

Não é novidade que jogos de videogame tem uma linguagem tão poderosa quanto outras mídias da atualidade. Reunindo excelências do cinema, da música, das artes plásticas e da literatura com a tecnologia, é um modo de imersão e vivência intermediadas por comandos a partir de um teclado ou joystick. É literalmente estar no controle de algo que move, age e combate o que vir pela frente dependendo do que cada game propõe.

Essa indústria tem crescido exponencialmente ao longo dos últimos anos pelas suas melhorias substanciais vindas a cada nova geração de consoles e inovações técnicas. Além disso, existe um desafio de criar novos modos de contar histórias, culpa de um belo experimentalismo pode-se dizer. A afirmação de Scott Hawkins, responsável pelo licenciamento de desenvolvedores da Nintendo, corrobora com esse crescimento também dado o seu poder de capital: “A indústria dos jogos é maior do que as de cinema e música combinadas”.

Segundo dados da Newzoo, o Brasil é o 13º maior mercado de videogames do mundo, o líder entre os demais países da América Latina. Em 2018, o país teve uma movimentação de cerca de R$ 5,6 bilhões na indústria. O futuro é promissor segundo a Pesquisa Global de Entretenimento de Mídia, da PwC, que almeja um crescimento de 5,3% até 2022.

Já temos diversos exemplos de como jogos nacionais podem criar narrativas poderosas que, na maioria dos casos, são condizentes com a nossa vasta e plural cultura. Para quem se encantou com Dandara, apenas alguns outros exemplos de produções de excelente qualidade que tem um dedo ou os dois pés na produção nacional : Angola Janga: Picada dos Sonhos, Celeste, Sociedade Nagô, No Heroes Here, Horizon Chase, entre outros.

Uma delas, Árida: Blackland’s Awakening, me chamou a atenção nos últimos dias pela sua temática e regionalização. Por uma troca de e-mails, realizei uma breve entrevista que foi respondida por Filipe Pereira, Produtor e Game Designer.

O Estúdio

Aoca Game Lab é um estúdio indie de Salvador composto hoje por 7 integrantes que se conheceram majoritariamente na UNEB (Universidade do Estado da Bahia), instituição que tem um elo fundamental com o desenvolvimento de jogos para outros coletivos da cidade e do país.

Fruto dessa rede nasce a Aoca. Acreditamos nessa valorização de temas culturais, na diversidade e na representatividade como diferenciais nessa indústria. Almejamos estabelecer um “jeito de criar da Aoca”, projetando experiências interativas inspiradas na linguagem internacional dos games, porém sem abrir mão de uma alma regional.

Muito do que foi almejado para Árida, assim como a consolidação do estúdio, foi construído no CV (Comunidades Virtuais), o centro de pesquisa e desenvolvimento da faculdade criado em 2002, pela Prof. Dra. Lynn Alves. Além de brasileiros, o CV ainda conta com a colaboração de portugueses e espanhóis em suas investigações e projetos voltados para a relação entre educação e tecnologia.

Ao falar do Comunidades Virtuais precisamos mencionar diretamente a Prof. Dra. Lynn Alves, uma grande referência na pesquisa e na docência em jogos no Brasil. Sempre muito visionária, a Prof Lynn criou o CV em 2002, focando exclusivamente em pesquisas que investigavam a relação entre educação e tecnologia. Mais adiante, em 2004, ela transformou o CV em um centro que também desenvolveria jogos. O grupo ainda existe até hoje, e da participação dele a Aoca tirou não somente os membros, mas também as percepções da importância de desenvolver ações no coletivo, e sobre o quanto faz diferença o pensar sistêmico na formação das redes, atuando localmente, mas também criando laços fora do estado e até mesmo fora do país.

O Jogo

Lançado em agosto de 2019 para PC, é o primeiro jogo da franquia ÁRIDA. Nesse primeiro capítulo o jogador aprende, encara e se aventura pelo sertão baiano de 1896 . Em seus primeiros segundos antes do gameplay começar, em poucos segundos é perceptível o cuidado da produção por fatores que valem ser destacados: o apreço gráfico nas ilustrações monocromáticas que se relacionam com a seca citada no texto, a trilha e a narração da protagonista Cícera:

“Eu vivo numa terra árida que é de rica natureza, é o lugar onde nasci me encanta sua beleza. Sinto agora que esse sol parece muito mais quente e essa chuva que não vem já maltrata minha gente”

Depois dessa breve introdução, que já carrega um pouquinho na trilha sonora a melancolia de sua história, somos apresentados a um mundo que contrasta um belo céu azul com a terra e árvores secas do cenário. Assim começa a aventura de Árida: Blackland’s Awakening.

A ideia inicial era ter a História de Canudos como o tema principal. Entretanto, a noção de que seria uma produção transmídia, com títulos futuros e uma crescente expansão desse universo, fez com que a história de Cícera se tornasse o foco do jogo. Isso deixou os eventos históricos da época como pano de fundo e contexto para Blackland’s Awekining.

A personagem foi criada para transportar o jogador àquele mundo tão caraterístico na literatura de “Os Sertões”, um dos marcos da história brasileira, só que agora em um jogo 3D. A atmosfera é ampliada gradualmente com pequenos monólogos da personagem, algo que dá uma noção de conto, de uma fábula carregada de sotaque e elementos daquele universo.

Foi bem natural a escolha de uma menina como protagonista, representada de forma menos estereotipada em relação ao que normalmente vemos de figuras femininas nos jogos. E não apenas por uma questão política, mas também pelo fato de que essa escolha traria um desafio muito interessante, para nós, criativamente, e para quem fosse jogar também, no sentido de não ser algo comum.

Com uma jogabilidade simples focada em reunir itens e inicialmente ajudar seu avô numa nova jornada, Cícera resgata memórias e reflete sobre a sua condição mostrando que Árida também tem um compromisso certeiro com seu próprio enredo. É um jogo de sobrevivência em uma das várias realidades brasileiras do século XIX.

Em seu menu é possível verificar os mantimentos, itens de preparação e objetivos a serem cumpridos. Nas andanças, pode-se encontrar pedras de amolar, farinha de mandioca, palha seca, entre outros recursos que ajudam não apenas na confecção de novas ferramentas ou satisfazem alguma vontade da protagonista.

A equipe passou algum tempo na região da Nova Canudos, o que foi fundamental para a criação gráfica, ambientação e referências do game. Isso foi essencial para o entendimento das múltiplas perspectivas dessa vivência e encaixar todo conteúdo em sistemas e mecânicas de jogo. Além disso, houve uma intensa pesquisa histórica sobre o período:

Imergimos bastante em pesquisas bibliográficas, iconográficas e audiovisuais também, de produções relacionadas com o sertão e localidades vizinhas. Tudo isso acabou fazendo diferença construção do setting, que a gente entende que é um diferencial competitivo do produto, para além da questão da ambientação propriamente.

A trilha e o trabalho de som nos efeitos sonoros também contribuem de forma caprichosa para essa ambientação. As músicas e trabalho de som inclusos foram produzidas pelo próprio estúdio.

Olhando de longe pode-se imaginar que exista uma pegada mais educativa em Árida e, apesar de ter um papel voltado para o entretenimento, isso não está totalmente errado: há sim um potencial instrucional no jogo, como comenta Filipe. Apesar do intuito dos desenvolvedores ser a diversão, a elevação da cultura que aborda tanto pelo enredo como por sua própria linguagem são essenciais para sua existência. Filipe ainda comenta sobre as múltiplas possibilidades que um jogo pode trazer:

Por valorizar essa capacidade expressiva dos games, focamos bastante na sensibilidade derivada da forma como enxergamos as artes visuais e a narrativa nos jogos.

Plataforma e internacionalização

Segundo Filipe, a primeira casa de Árida é o PC por uma motivação comercial e técnica, já que é a plataforma que o time tinha mais experiência no início da produção. Uma boa notícia para quem joga por outros meios é que em breve o jogo também estará disponível para consoles. Por enquanto não há previsão de lançamento. Para o futuro há um desejo de ser lançado no mobile, algo que traria mais jogadores ao game pelo grande número de acessos, principalmente no Brasil.

Conforme a 7ª Pesquisa Game Brasil, que leva em consideração dados de jogadores dos principais mercados de jogos da América Latina: Argentina, Chile, México, Colômbia e Brasil, no último ano smartphones foram majoritariamente um dos principais meios de se jogar, sendo que 60,8% do “Casual Gamer” e 34,4% do “Hardcore Gamer” utilizam smartphones para esse tipo de diversão. O levantamento ainda aponta que 73,4% dos brasileiros jogam algum tipo de jogo eletrônico.

Em seu desenvolvimento houve uma forte preocupação com a veiculação do jogo internacionalmente. O nome ganha esse caráter misto da palavra vinda do português brasileiro com um subtítulo em inglês. Isso é compartilhado nas configurações de idioma também, que tem opções nas duas línguas. Essa escolha ainda é sustentada de forma comercial, que facilita a ampliação dos jogadores do título por todo o globo. Muitos outros estúdios tem esse tipo de linguagem não apenas no produto, mas no marketing de divulgação. Fazer jogo no Brasil não é simples, é importante que projetos como esse ganhem o mundo.

Em termos de comunicação do estúdio, parte da pesquisa realizada consta no excelente trabalho de redes sociais do Aoca. As informações que compõem o jogo estão fragmentadas em algumas publicações sobre o universo do sertão baiano e tudo que referenciou a criação dos personagens, ambientações, vestimentas etc. É um bom exemplo de como homenagear o principal material de Árida: a cultura nordestina e regional.

O game tem pouco menos de um ano desde sua estréia e já carrega uma série de menções, indicações e premiações. Para citar alguns, foi finalista do BIG Starter em 2017 e de “Melhor Narrativa” pela SBGames em 2018; finalista do Nordic Discovery Contes na Etapa Brasil de 2019; selecionado para representar o Brasil na Courage Cologne em 2019 e venceu o prêmio de “Melhor Arte” do Gamepóltian 2017.

O game já tem uma continuação em desenvolvimento: Árida: Rise of the Brave. Os próximos passos de Cícera terão novidades interessantes em relação ao primeiro. Filipe pôde adiantar na entrevista que as dimensões de tempo com o ciclo de dia e noite estarão presentes, um bode chamado Titela acompanhará a garota na aventura, uma expansão de mundo será integrada, entre outros elementos. Essas e outras inclusões vieram em forma de feedback do público que tem contribuído para a construção da sequência.

Ainda não há previsão de lançamento, mas já é possível adicioná-lo a lista de desejos na Steam, algo que pode ajudar muito na visibilidade e engajamento da franquia.

Eu sou Diego Souza Carlos, um jornalista cultural apaixonado por boas histórias, música e kare.

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Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.