Steven Universo é encerrado da mesma forma como nasceu: ensinando a amar

Diego Souza Carlos
7 min readMay 12, 2020

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Após seis temporadas e um filme, desenho animado chega ao fim

20 anos se passaram desde os saudosistas anos 2000. Época que a TV bebia na fonte de tudo que foi criado nos anos 90 e aprendia sua própria maneira de ser e criar. Nos desenhos animados, as produções ainda eram feitas para vender brinquedo, mas por tamanha popularidade, e algumas boas histórias, criaram legiões de fãs, crianças que estavam interessadas nas mitologias criadas a partir de quadrinhos, livros, contos ou grandes cabeças do entretenimento.

O fato é que essas animações tem suas identidades e participaram da vida dos adultos de hoje seja pelo apelo nas lutas intermináveis, robôs violentos, mundos virtuais, meninas superpoderosas ou rinha de pokemons. Tudo isso recebeu um belo upgrade na última década e viu-se um espaço não apenas para apresentar novos valores morais, mas também discutir temas que até então as crianças não tinham participação. Steven Universo é um dos maiores exemplares dessa nova forma de conversar com jovens e adultos através de desenhos animados. Tudo criado de maneira amorosa, delicada e muito relevante.

Nós somos as Crystal Gems…

Criada por Rebecca Sugar, que trabalhou em Hora de Aventura, a série acompanha as aventuras de Steven, um garoto meio humano, meio alienígena criado por Crystal Gems, a espécie que compartilha seu lado materno, seres que basicamente adquirem um corpo em volta de uma gema. O desenho começa despretensioso, mas carrega consigo mensagens sobre diversidade, aceitação, força e superação. Apesar de ter apenas a meia descendência, a humanidade do protagonista e a reafirmação da mesma é um dos grandes pilares da animação.

Em episódios com pouco mais de 10 minutos soube como mostrar as fraquezas e inseguranças de seus personagens, falar sobre vida e morte, assim como estabelecer caminhos para o diálogo ao invés da guerra (quando possível). Entre diversas temáticas, uma delas se destacou durante os anos: a ideia de que existem múltiplas formas de amor e de amar, algo que está pulverizado em diversas personagens de Steven.

Na série, todas as gems parecem ser mulheres. Elas se relacionam entre si como amigas, parentes ou companheiras. De modo muito natural, são inseridos relacionamentos entre essas personagens. Algo difícil de se ver até então. Um dos momentos mais marcantes da série, por exemplo, é o casamento de Ruby e Safira, que de tanto amor decidem viver como uma fusão: a Garnet.

Os múltiplos gêneros também são pincelados durante o programa, mesmo não os citando. Existe um recurso de linguagem que dá a entender que uma personagem poderia ser transgênero, por exemplo, com nomes neutros, voz feminina e aspectos masculinos ou vice-versa. É um reforço constante, mas que na maioria das vezes não é o foco das tramas, das pluralidades de pessoas que podem existir. A própria forma como as gems podem se fundir ou se apresentar ao mundo também diz muito sobre essa fluidez. Temas esses que são naturalizados sem grandes convenções, apenas fazem parte da mitologia e pode-se ou não ir além da primeira camada.

Arco-íris (fusão entre Steven e Pérola)

Algo que também ficará marcado na essência do desenho são as fortes canções ora despretensiosas, ora cheias de amor. Uma série com muita ação, lutas explosivas, cor, uma trilha sonora original que tem seu pé no vaporwave e no lo-fi, com diálogos “arrasa-quarteirão” que fizeram muito marmanjo (a) chorar. Em clima de despedida, vale ouvir mais uma vez uma das canções mais emblemáticas de Steven. Criada por Garnet quando conta que é uma fusão, ela defende esse A-M-O-R no meio de uma batalha:

A versão original ganhou até clipe com direito a uma apresentação cheia de fãs com Estelle:

Quer saber mais sobre Steven Universo: O Filme? Tem texto aqui.

O Futuro

Composto por seis temporadas e um filme, foi encerrado em 2020 com sua última leva de episódios com o subtítulo “Futuro”. Há um pequeno salto desde as aventuras do ano 5 e vemos todos os efeitos das últimas aventuras, incluso o filme, em 20 novos episódios.

Agora, a cidade de Beach City tem novos habitantes: Crystal Gems em todos os cantos. A população recebe todas de forma muito natural, visto que já vivem com Steven, Garnet, Pérola e Ametista há anos. Todas participam da Mini Escola Natal onde podem aprender mais sobre a Terra e encontrar suas devidas vocações nesse novo planeta sem a necessidade de lutar ou servir alguém.

A temporada tem início com o clima de “Felizes Para Sempre”, música apresentada em Steven Universo: O Filme. Algo que tem diversas inclinações para o que foi este último ano. Aparentemente, Rebecca ouviu o feedback de muitos fãs e na música fala sobre como todas as tramas ao longo dos anos envolveram as consequências dos atos da mãe de Steven e a tentativa do garoto em lidar com isso. Havia um pedido de que finalmente ele encontrasse sua própria voz e tivesse seu desenvolvimento sem se apoiar nesse laço. A canção serve de tema de abertura de Steven Universo Futuro, segue um trecho:

Houve um tempo em que eu andava / Preso na sombra materna / Respondendo por seus crimes / Dentro de uma batalha eterna / Até aperfeiçoar / Meu poder particular!

Ao desenrolar da temporada, Steven aprende que o “Felizes Para Sempre” não existe da forma como imaginava e assim começam inúmeros conflitos internos sobre seu futuro, seu propósito e tudo que está ao seu redor. Os primeiros episódios se apegam muito na nostalgia e tem caráter episódico com situações que levam o protagonista a reencontrar todos que participaram dos anos anteriores atualizando suas vidas naquele momento. Há uma sensação de filler* nesse início, mas pequenos pedaços começam a se amarrar pela frente.

O único elo nos primeiros capítulos é perceber aos poucos que o garoto não responde muito bem a todas as mudanças dando início a uma crise que desencadeia uma espécie de doença, manifestada através da energia de sua gem que elvolve todo o seu corpo. Um transtorno que ao se agravar modifica também sua estrutura corporal e pode ser um perigo a quem está próximo. A cada surto, ele fica violento e se rebela contra muitos de seus amigos. A adolescência chega para todos e é muito justo o modo como a criadora respeita seu personagem e mais uma vez o humaniza.

Pink Steven

Apesar de ter vivido sempre num mundo tomado pela fantasia, a última temporada coloca um pé na realidade. É momento de despedidas e entender que nada tem um estado permanente na vida. Steven se vê ficando para trás enquanto seus amigos vão viajar pelo universo, fazer tour com a banda pelo mundo ou se aventurar no empreendedorismo. Connie, sua fiel amiga e parceira, é ponto decisivo na constatação dessas mudanças, algo que agrava seriamente os transtornos físicos e psicológicos de Steven.

A sobriedade desse momento é apresentada na segunda parte da temporada de forma muito crua quando entende-se que a criação do personagem foi conturbada demais. Apesar de todo o carinho e cuidados, foi criado por três alienígenas, com uma alimentação duvidosa, sem ir a escola ou ao médico, além de ter um pai nem sempre presente. Em “Sr. Universo”, entende-se um pouco mais sobre o passado de Greg e algo surge entrelinhas: Steven nunca conheceu seu avós paternos por uma birra do próprio pai?

Steven viveu muitos traumas na infância, situações perigosas onde teve que se arriscar para salvar sua vida e sua família incontáveis vezes. Isso tem um preço psicológico enorme para uma criança e é justamente esse um dos principais temas da última temporada, o surgimento do peso emocional dessas ações e escolhas. Por fim, o jovem adolescente não precisa apenas lidar com mudanças e o amadurecimento, mas também a cuidar de si. Saber que abraçar o mundo tem um preço alto cheio de consequências. E nessa situação, ter amor e com quem contar é essencial.

É uma despedida cheia de momentos marcantes que mais uma vez farão rolar muitas lagrimas dos fãs que acompanharam o programa desde que Steven era uma criança pequena e cantarolante, num desenho com traços mais livres e nem sempre definidos. Assim como a mensagem repetida durante os 20 episódios, tudo muda, mas se houver respeito consigo mesmo, amor e a compreensão sobre a existência do outro, a vida pode ser menos dolorosa. Nesse sentido de imprevisíveis mudanças, o futuro é incerto, e se tratando de Steven sempre há uma esperança do que virá pela frente. Talvez um adeus seja definitivo demais.

  • Filler: episódio que normalmente não está associado a história principal da temporada/série.

Eu sou Diego Souza Carlos, um jornalista cultural apaixonado por boas histórias, música, cinema e kare.

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Written by Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.

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