Se coisa tá preta, a coisa tá boa

Diego Souza Carlos
7 min readNov 20, 2018

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Termologia racista e suas estruturas

Algo realmente incômodo para pretos pensantes e bem maravilhosos é ouvir com muita frequência a palavra negro e seus derivados serem utilizados com uma conotação ruim. “Lado negro da força”, “a coisa ficou preta”, “preto fazendo pretisse”, “tinha que ser preto” e por aí vai. Nesse Dia da Consciência Negra é preciso colocar alguns pingos nos is.

Palavras-chave

A partir desse movimento de desconstrução citado em outros textos quando se pensa no assunto abre-se um leque de linguagem. Já pararam para se perguntar porquê certa palavra tem aquele significado? Ou de onde surgiu uma expressão? Aliás, já tentaram explicar conceitos simples como uma cadeira, por exemplo? Vale uma pesquisa sobre etimologia e o mundo das idéias de Platão. O que achamos ser simples pode ser muito complexo.

Bastante falado no movimento negro, o desuso de certos termos que reforçam estigmas preconceituosos sobre pessoas negras deve ser colocado em prática. Mais uma vez, trata-se de uma herança da nossa colonização. Embora hoje possam ter novos significados, o poder das palavras é imenso e a utilização delas séculos após o seu nascimento carregam um marca de sofrimento gigantesca. Significado e simbolismo se encontram aí. Há quem diga que deixar de usar algumas palavras é negar a renovação do vocábulo. Acreditar nisso deslegitima algumas lutas e crenças, não? Inclusive, não aceitar seu uso reflete uma renovação no intelecto e compreensão do povo.

Barreiras

Um dos maiores problemas do conservadorismo é a tradição (moral e bons costumes, rs). Geralmente são práticas e discursos criados há décadas e séculos que perpetuam aos efeitos do tempo. Chegam a contemporaneidade sem grandes conflitos pelos que os reproduzem, pois sempre há alguém superior que os dita.

Uma característica bem marcante do conservador é não ter abertura ao novo e reutilizar tudo o que aprendeu “como diz a tradição”. Um erro cabal que dá potencia a proliferação de preconceitos já que a sociedade não é a mesma de 5, 10, 15, 50, 100 anos atrás. O que podia ser considerado piada quando nossos pais eram jovens, hoje é considerado racismo, by the way.

No caso do uso de termos racistas, a sociedade tem o papel com a reprodução em massa (pelos atingidos ou não). Seja pelo núcleo básico, amigos do trabalho, televisão, internet, escola…a nossa vida sempre recebe uma série de influências. Principalmente quando somos crianças, não há um filtro que discerne o que pode ser racista, homofobico ou machista. E essas práticas são levadas por toda a vida sem que haja um questionamento sobre o hábito.

Algumas listas na internet citam vários dos termos racistas que são ouvidos e ditos até hoje no Brasil. Brevíssima lista:

https://pragmatismo.jusbrasil.com.br/noticias/191503582/13-expressoes-racistas-que-precisam-sair-do-seu-vocabulario

https://www.geledes.org.br/18-expressoes-racistas-que-voce-usa-sem-saber/amp/

Todas as expressões chamam a atenção, pois se parecem inofensivas em determinado contexto. Mas como dito, carregam um valor histórico doloroso como “serviço de preto” que reforça que o lugar de negros é no trabalho braçal com a mão-de-obra da escravidão.

Algo muito sutil também é o uso da palavra mulata, que se origina de mula (o animal), fruto do cruzamento entre jumento e égua, até ser dito como sinônimo da mistura de brancos e negros na época escravocrata. Para conhecer mais, vale a leitura de ambas as listas acima.

O cabelo de mulheres, homens e crianças negras são vítimas do famigerado “cabelo duro”. Inclusive, não há faixa etária para esse tipo de nomeação estética. Lembro-me muito bem de uma amiga citando que o cabelo dela não era ruim pois nunca havia feito mal a ninguém. Só aos olhos dos racistas mesmo.

Incrível como o movimento negro, principalmente de mulheres, tem tido uma vanguarda maravilhosa em libertar seus crespos das chapinhas forçadas guela abaixo pela mídia. Mostrar a força com um Black Power, tranças, dreads, carecas, isso é revigorante! Não que a chapinha seja errada, são escolhas e autoconhecimento no final das contas. Eu nem posso falar muito sobre cabelo…

Largar o conservadorismo e entender que essas palavras e expressões afetam diretamente a vida de outras pessoas é algo que todos podem fazer contra o racismo. A termologia se aplica em nosso cotidiano pois já se tornou cultural, assim como o racismo estrutural, velado e enraizado que afeta o desenvolvimento da população negra no Brasil.

Racismo estrutural

Recentemente, em um grupo de profissionais de comunicação, encontro um debate sobre uma vaga destinada preferencialmente a pessoas negras. A partir disso surgiu uma discussão sobre racismo, meritocracia e desigualdade social. Apesar do início de uma discussão saudável, não esperava encontrar certos comentários no meio de tantos jornalistas, publicitários e relações públicas. Nessas situações é possível enxergar como o privilégio branco cega as pessoas. Aliás, discussão saudável a gente faz em mesa de bar, no whatsapp não há tom.

É óbvio que falar sobre tais assuntos é urgente e precisa ser elevada ao máximo em todas as potências. Ainda mais por alguém que faça parte desses grupos de “minoria” (pessoas LGBTI, negros, mulheres…), não fiquei quieto. E minoria entra em aspas, pois não reflete a sua quantidade em proporção ao todo e sim a sua presença social expressiva, que consegue lugar de fala. Engraçado que o falar com a cabeça quente não é nada produtivo. Mais uma reflexão sobre o que procuramos: discutir, debater ou dialogar?

Quando comecei esse texto, as eleições ainda faziam parte de um futuro distante. Hoje, manifestações como essas são comuns. Principalmente pelo eleitorado Daquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado.

Aquele momento foi crucial para o que estava por vir, uma situação teórica, que era sabida por todos, mas que me arrebatou com a força de um machado no final do primeiro turno: a nossa bolha social é cruel e muito ilusória, pois faz com que enxerguemos um universo de unicórnios felizes que concordam com você, com o que é dito, com seus gostos e ideologias.

Voltando ao ponto do grupo de whatsapp (dos quais estamos cansados, SIM), queria salientar algumas coisas, o que me levaram a estar aqui:

O racismo existe, não é uma ficção e nem deixou de acontecer. Ele pode estar mais velado no convívio físico, mas basta observar comentários nas redes sociais. Não é necessário esforço algum, tente visitar a página de celebridades e influenciadores negros. Está lá. Sem filtro.

Quando pensamos em racismo, vamos direto ao repúdio visual e físico a pessoas negras, à cor da pele, à toda nossa melanina. Mas o que acontece hoje é tão latente e perigoso quanto qualquer caso explícito. Trata-se do racismo estrutural, veiculado diretamente ao sistema: como as coisas funcionam; construções sociais que permeiam há anos dentro da nossa sociedade.

Um exemplo simples é a associação de ladrões e bandidos a pessoas negras e pobres. De onde surgiu esse esteriótipo? Vem lá de atrás, diretamente da escravidão. Outro exemplo e um exercício ótimo para entender essa estrutura é observar quantos negros em cargos de liderança existem em uma empresa. Aliás, em alguns casos, quantos negros trabalham numa grande empresa. A metade da população não ocupa esses espaços por que não quer? Acho que não!

Poderia citar diversos outros exemplos, mas acho que faz-se entender. Enquanto tentamos desvincular essas associações, o futuro presidente da república e apoiadores botam a culpa da escravidão nos negros. Não é Fake News hein. Claro, todos vieram de bom grado quando os europeus fizeram propostas amigáveis em seus países. Claro. Os livros de história sempre estiveram errados. Óbvio, não temos uma herança porca de um Brasil extremamente racista. Menos, Bozo!

Há três meses, a filósofa, escritora, ativista e acadêmica brasileira Djamila Ribeiro esteve na conferência “Lugar de Fala” discutindo subjetividades e grupos sociais”. Na ocasião, ela fala sobre a importância de discutir o racismo hoje no Brasil :

“Acho que num País como o nosso, que foi fundado no mito da democracia racial, as pessoas têm dificuldade de entender inclusive o que é racismo. A gente ainda acha que o racismo é algo do campo individual, da moral, e não entende o racismo como um sistema político que impede que as populações negra e indígena acessem direitos básicos. Então, geralmente as pessoas quando veem alguém famoso sofrendo um caso de racismo, se espantam com aquilo, achando que racismo é só aquilo, mas não se espantam sobre o porquê nunca tiveram um professor negro, por que na empresa em que trabalham não tem pessoas negras, porque não conseguem entender racismo como um sistema. Acho que esse é o nosso grande problema. Se as pessoas entendessem de fato o que é racismo e como ele vem historicamente minando oportunidades e negando direitos básicos, elas entenderiam porque a gente julga importante ter representatividade, ter pessoas negras e indígenas ocupando espaços que historicamente foram impedidas de estar.”

E para finalizar, não menos importante, quero falar sobre o título desse texto. A criação de expressões e palavras de muitos e muitos anos atrás na história. Geralmente quando se fala “A coisa tá preta”, imagine-se que a situação não esteja lá das melhores. Por que a cor preta precisa representar sempre o negativo? Bora desconstruir esse rolê? Como diz Rincon Sapiência, a coisa tá boa, a coisa tá preta.

Ouçam esse som maravilhoso e cantem junto:

Se eu te falar que a coisa tá preta
A coisa ta boa, pode acreditar
Seu preconceito vai arrumar treta
Sai dessa garoa que é pra não moiá

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Diego Souza Carlos
Diego Souza Carlos

Written by Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.

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