O que Miles Morales, Ellie e Kamala Khan podem nos dizer sobre o futuro dos games e da cultura pop

Diego Souza Carlos
10 min readJun 29, 2020

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Personagens pautados pela diversidade ganham espaço nos videogames

O anúncio de uma nova geração de consoles sempre gera uma alta expectativa sobre os jogos, tecnologias e recursos desse novo mundo. O game que abre as portas normalmente é escolhido pelas empresas como uma grande aposta e chamariz para que jogadores peguem suas carteiras, não percam tempo e adquiram o novo videogame com uma aventura única que irá apresentar todos os gráficos e mecânicas do futuro.

Como uma expansão do universo criado em Marvel’s Spider-Man do PS4, Spider-Man: Miles Morales teve seu anúncio em conjunto do tão aguardado PlayStation 5, em 11 de junho. Foi o primeiro trailer. O primeiro personagem a ser apresentado num dos maiores eventos de videogames do mundo foi um herói negro.

Essa escolha pode estar relacionada a inúmeras causas, mas vale se ater a duas: uma referência a luta antirracista norte-americana incendiada pelos protestos após a morte de George Floyd e também uma possível ciência de que o futuro da cultura pop, e consequente dos videogames, não deve mais ser pautado num único olhar.

Miles Morales é o Homem-Aranha

Sei que muitos cresceram com a ideia de que o manto do teioso servia a Peter Parker, mas em algum ponto das milhares de histórias da Casa das Ideias, Miles, um jovem negro hispânico do Brooklin é picado por uma aranha radioativa e passa a lidar com grandes poderes e grandes responsabilidades. Só que dessa vez ele não é branco, o que já carrega uma série de possibilidades e bagagens para o personagem.

É sabido que no mundo das HQs existem diversas linhas narrativas e universos paralelos ou cruzados. Miles já foi do Ultimate, mas foi parar no universo regular. Já viu Peter morrer e já coexistiu com o fotógrafo. O importante é que hoje ele é um Homem-Aranha tão relevante (talvez até mais) do que o sobrinho de Tia May.

A criação do personagem é fruto de nossa época. Não surgiu porque Peter não funcionava mais com os fãs, de maneira alguma. Se observar bem, Parker continua tendo imenso sucesso após 58 anos de existência. Só olhar para o lado para identificar as três trilogias cinematográficas, as animações, os jogos, brinquedos e reinterpretações. Miles surgiu pela necessidade de uma nova abordagem para esse herói. Foi então que em agosto de 2011, há quase nove anos, teve sua primeira aparição no mundo pelas mãos de Sara Pichelli e Brian Michael Bendis em Ultimate Comics: Fallout #4. Vale dizer que Brian é responsável também pela criação de Riri Williams, a Iron Heart, uma garota negra brilhante que aos 15 anos entrou no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e assume uma armadura semelhante a de Tony Stark.

A história de Miles ainda tem relação com as inquietações de Donald Gloover, que atua na indústria musical como Childish Gambino (This is America, lembra?) que foi protagonista do #Donald4Spiderman, que tinha como principal questionamento a não existência de um homem-aranha negro. Essa movimentação fez parte do vindouro nascimento personagem. Por fim, um dos heróis mais humanos da Marvel seria negro e teria sua própria narrativa. Load Comics escreveu um artigo recente sobre a trajetória do herói que vale muito a leitura.

Donald Gloover em Community

Essa reivindicação vem do mesmo lugar que surgiu Kamala Khan, a Miss Marvel, a latina e lésbica Ms. América, o Nova de Sam Alexander, a Thor de Jane Foster (que chegará aos cinemas em Love and Thunder), Amadeus Cho como Hulk, entre outros personagens que surgiram ao longo dos últimos anos que fogem do padrão branco, cis e hétero que vemos o tempo todo basicamente em qualquer lugar midiático, do cinema ao comercial de Hellmanns. São personagens criados pela história que se escreve na atualidade, da luta pela diversidade cultural, étnica e religiosa. Temas que precisam ser discutidos, elevados e inseridos na cultura pop. Hoje, já existem grupos formados apenas por mulheres ou composto por boa parte desses heróis multiculturais como Marvel Rising ou Os Campões.

Os Campeões

De volta aos jogos, é satisfatório saber que mesmo sendo menor que o original, a Sony e a Marvel puderam enxergar tanto na divisão de videogames como no departamento de animações a importância de transportar Miles Morales para outras mídias.

Ter um jovem negro hispânico como a cara da nova geração de videogames pode, e esperemos que isso se concretize, ser uma abertura para a produção de novas histórias no universo dos games, que a cada ano ganha mais camadas narrativas que se referenciam claramente ao cinema, TV e literatura.

Spider-Man: Miles Morales

Uma vez que no audiovisual tem-se a disposição de imersão num universo diegético criado para contar uma história, os games podem fomentar outro tipo de experiência: uma vivência simulada e controlada a partir da mediação de um console. E isso, tendo boas histórias para se contar, é um ganho tremendo não só para descobrir novos mundos, mas também inserir olhares que até então não recebiam tanto espaço neste tipo de mídia ou eram desconhecidos para grande parte do público.

Ninguém melhor para salvar os Vingadores do que Kamala Khan

Mas não é apenas com foco na Playstation que vivem os gamers, prometido também para Xbox One, Google Stadia e PC, o jogo do principal time de heróis da Marvel esteve sob rumores nos últimos anos. Desde um teaser na E3 de 2017, que não mostrava absolutamente nada concreto sobre como, quando e o que seria esse game, um anúncio robusto chegou no segundo semestre de 2019. Marvel’s Avengers vai colocar o jogador na pele do Homem de Ferro, Viúva Negra, Hulk, Thor e Capitão América. Até aí ok, nada muito surpreendente para um jogo dos Vingadores. Ainda mais que essa equipe é a mesma apresentada nos cinemas, então provavelmente há um interesse em fazer uma associação entre as mídias, mesmo que os universos sejam diferentes.

Eis que, alguns meses depois surge uma nova personagem em um dos vídeos: a Miss Marvel. A super-heroína paquistanesa-americana faz parte das principais criações da empresa da última década. Muçulmana, Kamala é nas palavras de muitos, o Homem-Aranha do nosso tempo. Ela representa de diversas formas essa juventude pop das redes sociais, dos memes e da nerdice.

O cuidado dos múltiplos criadores, Sana Amanat, Stephen Wacker, G. Willow Wilson, Adrian Alphona e Jamie McKelvie, foi criar uma personagem adolescente num mundo em que os heróis existem e ela é a maior fã deles. Suas histórias são recheadas de clichês remodelados a sua identidade, o que de certa forma também carrega traços de originalidade para os arcos. Precisa lidar com as questões da sua religião e cultura, os dramas da sua família e o terror do High School enquanto se descobre Inumana (tem poderes assim como os mutantes, mas a origem é outra).

As suas HQs são recheadas de momentos divertidos, reflexões e demonstram toda a humanidade da personagem, no lugar onde o erro e o acerto são constantes para que haja um reconhecimento tanto dela como do leitor. Algo que lembra muito com os malabarismos de Peter Parker. Eventualmente ela conhece Miles, se torna uma vingadora, renega esse posto e vai aos poucos ficando cada vez mais forte e poderosa assim como sua heroína favorita, a que inspira seu codinome heroico, Capitã Marvel.

Kamala, com todo esse background, foi confirmada essa semana como a protagonista oficial de Marvel’s Avengers. Isso, como já devem imaginar, foi alvo de reclamações. Mas o que vale se atentar aqui é a importância que a personagem tem para muitas meninas, muitas meninas paquistanesas, muitas jovens que dificilmente se veem na TV, cinema e quase nunca nos videogames.

Miss Marvel também ganhará uma série. Parte do pacote da Disney+, que integrará séries e filmes ao MCU (Universo Cinematográfico da Marvel), ela começara na TV e seguirá para os cinemas. Ainda não há previsão de estreia.

Se tiverem interesse em ler algo rápido, Kamala protagonizou um conto de G. Willow Wilson em uma história que se passa durante a pandemia do novo coronavírus.

Intolerância na comunidade gamer

Não são apenas as heroínas que sofrem ataques nesse meio. Mulheres num geral tendem a ser objetificadas de inúmeras formas, quando não são muleta para personagens masculinos terem suas histórias contadas. Infelizmente o racismo, a homo e transfobia reunidos ao machismo são apenas alguns dos preconceitos destilados na comunidade gamer. O caso Mil Grau que o diga. Esse combo de intolerância transbordou dos fóruns para redes sociais demonstrando o quão necessário é fomentar o debate acerca da diversidade nesse meio.

O caso mais recente, um dos vários, está na recepção de The Last Of Us Part II que tem Ellie, uma garota lésbica, como protagonista na continuação de uma das maiores franquias da PlayStation. Houve um movimento no Metacritc em que jogadores zeraram suas avaliações a fim de boicotar o jogo. Isso acontece bastante tanto no mundo dos games como no cinema. Tanto que no ano passado o Rotten Tomatoes mudou sua política de notas para evitar esses ataques. Hordas de haters insatisfeitos com algum aspecto da jogatina fazem esse tipo de ação em massa para chamar atenção numa tentativa de arruinar algum título. Um dos comentários “muito bem embasado” é esse:

Já na crítica especializada, as notas inicias foram mais ou menos assim:

Ao mesmo tempo que os ataques, choros na internet e quebras de discos (veja a imagem abaixo) dizem muito sobre a toxicidade de parte do público, é importante ressaltar a decisão da empresa em abordar a diversidade num jogo tão importante- “esperado há sete anos, cara”. E mais, ainda no aspecto das respostas dos garotos brancos que estão se sentindo perdidos por não serem a cara do jogo, esse tipo de decisão/abordagem é ainda mais especial mesmo que ainda haja um caminho árduo a se trilhar.

Apesar de todo o barulho, a Part II já é um dos maiores sucessos da PlayStation com alguns recordes em pouco menos de uma semana de lançamento. Só para citar alguns: o jogo ultrapassou as pré-vendas de God Of War (PS4) no Brasil, superou o recorde de vendas mais rápidas de um jogo de PS4, o posto era de Uncharted 4; já é o maior lançamento de 2020 na Alemanha; é o maior lançamento de PS4 na República Tcheca, Reino Unido e Eslováquia até o momento.

E como toda grande história da indústria cultural, e aqui lê-se grande lucro, está por vir uma adaptação de The Last of Us para a televisão. A série será produzida pela HBO, a emissora de grandes sucessos como Game Of Thrones (desconsidere o final), Euphoria, Insecure e Years and Years. O programa será escrito e dirigido por Craig Mazin, criador da grande revelação de 2019 Chernobyl e também por Neil Druckmann, responsável pelo jogo. Talvez a galera revoltada vá espernear mais um pouco.

A pandemia não é o única doença que assola o mundo

Se tivermos sorte, esses três personagens e suas histórias não serão os únicos a abordarem a diversidade nos videogames. Já temos outros exemplos menores dessas narrativas que precisam de atenção e que gradativamente podem ganhar o mundo. Ver a magnitude do investimento, da divulgação e a confiança dos estúdios nessas narrativas é um grande passo. Deve ser visto com sorriso no rosto.

Convenhamos que o mercado, independente da área, pensa antes de qualquer questão no lucro. Se houve uma aposta para a existência de Miles, Kamala e Ellie nos videogames entre os poderosos é indício de que finalmente as minorias identitárias começaram a ser ouvidas. Esse reconhecimento não é pontuado para passar a mão na cabeça de empresário, mas entender que as movimentações sociais tem tido seu efeito ao longo dos anos também nessa indústria tão problemática. E ter a responsabilidade de abrir as portas de um novo console ou participar dos seus últimos grandes lançamentos amplia o significado nessa onda de mudanças.

Eu sou Diego Souza Carlos, um jornalista cultural apaixonado por boas histórias, música, cinema e kare.

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Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.