O poder narrativo e imersivo de The Last Of Us Part II

Diego Souza Carlos
8 min readNov 12, 2020

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Game é um dos últimos exclusivos do Playstation 4

Fonte: Acervo Pessoal / Ellie em The Last Of Us Part II — Modo Foto

Aguardado, ansiado e fonte de intensas polêmicas, The Last Of Us Parte II veio ao mundo em junho de 2020. A continuação da história de Ellie e Joel surge em um momento conturbado em que é possível fazer várias ligações do mundo real com o contexto em que os personagens vivem.

Como foi lançado no fim do primeiro semestre do ano, a pandemia do novo coronavírus já fazia vítimas em todos os continentes e testava a capacidade política e administrativa de governos mundo a fora. Mesmo com suas diferenças, existem sintomas que andam juntos entre a ficção e a realidade conforme dito no texto sobre jogar o primeiro game nesse momento. O fato de termos uma doença letal e sem cura no mundo é uma delas (calma, a vacina vem!). Outro ponto é o impacto histórico, psicológico e até potencialmente paradigmático com o mundo antes das pandemias.

Fonte: Acervo Pessoal / Ellie em The Last Of Us Part II — Modo Foto

Além dos paralelos levantados com a atual condição global, a segunda parte dessa história veio com diversas polêmicas. A principal é o protagonismo de uma mulher lésbica na sequência de uma das principais franquias da PlayStation Studios. Não apenas o fator inicial, mas também as inserções feitas na história que contam com o maior medo de grande parte da comunidade gamer: a representatividade e diversidade, ou como eles mesmos dizem, a “lacração”.

Essas escolhas de Neil Druckmann e equipe foram responsáveis por cutucar essa maioria tóxica a realizar petições e ações contra o game. Fora os ataques nas redes sociais, os jogadores foram aos montes registrar críticas zeradas em sites que fazem a média da recepção de jornalistas e público. Agora, meses depois do lançamento, vale dizer que alguns cães ladram, mas realmente não mordem (só os do jogo): até julho The Last Of Us Parte II era considerado o maior lançamento do ano em alguns países, além de ser o jogo mais vendido da empresa aqui no Brasil, pelo menos até o início de agosto.

Vale dizer também que seria cômico se não fosse triste o fato de que os questionamentos sobre o jogo sejam problematizando a inclusão e a diversidade, visto que a violência experienciada no primeiro ganha uma escala absurdamente maior, ampliação feita de forma bela no sentido dos avanços gráficos e tecnológicos, crua e realística no sentido de jogabilidade.

Gameplay

Além do desenvolvimento visual, o som, que é parte essencial da franquia, também teve seus updates. Agora, ao correr ouvimos Ellie ofegar. Matar alguém furtivamente tem seus efeitos de som melhorados, ouve-se ossos quebrando, tiros perfurando, tudo com muita nitidez se assim podemos dizer. Esfaquear um inimigo e arrastá-lo pela grama se torna algo incrivelmente palpável, mesmo que fluido demais. Assim como Resident Evil 2 Remake, ao atirar nas pessoas com armas mais poderosas os membros dela se repartem, cabeças estouram.

Fonte: Acervo Pessoal / Ellie em The Last Of Us Part II — Modo Foto

Esse realismo levado para o videogame tem vários aspectos que podem ser pontuados. A violência ganha destaque com essa camada sangrenta e ilustrativa de “maneiras de matar e morrer” e, entenda que os desenvolvedores trabalharam minuciosamente para criar tais ocorrências. Essa escolha em trazer o realismo para o videogame culmina também, alinhado a feições e diálogos polidos do roteiro, em uma completa humanização do personagem.

Há uma aproximação nessas longas horas de jogatina em fazer com que a imersão seja gigantesca. Os paralelos que podem ser criados nesse ponto são bem interessantes, pois sendo um jogo pautado pelo alto nível de fotorrealismo, tem o intuito de simular a realidade. Nessa perfeição de gráficos, sons e movimentos, com respiração, gritos de dor, levantar, correr e deitar, os personagens digitais se aproximam cada vez mais do nosso mundo.

Essa humanização não é exclusiva dos personagens jogáveis. NPCs também ganham certa importância na trama. Ao ser cortado por um machado, uma inimiga pode gritar até a morte; ao ver o amigo morto no chão o NPC pode chorar a perda do colega ou ficar mais furioso na procura de Ellie. Agora, todos eles têm nome. E mesmo que isso não seja um spoiler, dado o modo com a história se desenvolve, é sempre importante olhar ao redor para saber quem integra certos momentos da história.

Toda essa agressividade e novos elementos narrativos não estão ali por acaso. Em entrevista ao site Eurogamer, a designer de gameplay Emilia Schatz cita que a vioência elevada do título é consequência de sua própria história. Ela comenta:

Penso que o ódio e a violência são o objetivo para o jogo, mas existem mais coisas acontecendo na história. A violência é realmente importante para criar um mundo crível. Queremos que todos os personagens e inimigos pareçam pessoas reais e humanas. É por isso que todos eles tem nome. Queremos que você se sinta desconfortável com o nível de violência.

A jogabilidade num todo rememora o que foi visto no original com algumas melhorias. O sistema de construção de kits médicos, bombas e armas permanecem as mesmas com algumas alterações. Além disso, existe uma nova mecânica de stelf: deitar na grama, algo que abre possibilidades de esconderijos durante as batalhas. Há também a dificuldade enorme em lidar com os cães de caça, eles podem te farejar e não é possível se esconder no mesmo lugar por muito tempo. Discussões na internet surgiram sobre quem decidiu matar ou quem poupou a vida dos bichinhos a custo da própria vida no game.

Fonte: Acervo Pessoal / Ellie em The Last Of Us Part II — Modo Foto

Fora as novidades, o conceito de “não se mexe em time que está ganhando” soa bem quando se pensa nas mecânicas, e não há demérito nisso, já que o mote para ser um forte candidato a Game Of The Year, que terá os candidatos anunciados na próxima semana, está pautada em dois pés: os gráficos e a sua história complexa.

Algo que precisa ser pontuado na produção do jogo são as suas opções de acessibilidade. O jogo veio adaptado para que Pessoas com Deficiência (PCDs) pudessem curtir essa experiência da melhor forma. Então, além da audiodescrição e legendas, que alguns jogos anteriores já tinham, o game conta com alto contraste, sistema diferente de cores (para daltônicos), mapeamento de botões, assistência de navegação, sinais de áudio, entre outros elementos. Segundo o site Dager System, que monitora o nível de inclusão de jogos para esse público, o título não possui barreiras para pessoas que possuem deficiência visual, motora ou auditiva.

História

Fonte: Acervo Pessoal / Ellie em The Last Of Us Part II — Modo Foto

The Last Of Us Parte II se passa anos após os acontecimentos finais do primeiro game. Ellie, agora no fim de sua adolescência e no início da vida adulta, tem certa independência de Joel e uma fama de durona na cidade de Jackson. Após alguns acontecimentos, a garota parte em uma jornada com Dina, sua amiga e interesse amoroso, em busca de vingança.

Velhos personagens surgem, novos são apresentados e toda aquela ambientação vista no primeiro game ganha novas molduras. As cidades destruídas, a invasão do verde, florestas, prédios devastados e lugares abandonados, tudo está lá, mas agora com um apelo gráfico dificilmente visto nessa geração de consoles que está perto do fim. As gotas de chuva são visíveis, o balanço das árvores, mudança sutil de expressão das personagens e a transição quase imperceptível de gameplay com cutscene são alguns dos elementos que vão deixar qualquer jogador encantado.

Sem apresentar spoilers, é possível dizer que a sequência insere elementos narrativos que deixarão a jogatina extremamente densa e até mesmo reflexiva. Não há mais uma perspectiva unilateral. Ellie está com sede de vingança, mas ela não é a única. Nessa sequência somos apresentados a Abby, uma personagem que cresce gradualmente ao longo da trama e se torna controlável em certo ponto. O seu surgimento é a essência da dicotomia proposta pelo roteiro, muitos vão se afeiçoar com seu jeito durão de coração mole, outros podem não entender suas sutilizas.

Fonte: Acervo Pessoal / Abby em The Last Of Us Part II — Modo Foto

Em diversos livros, filmes e séries já trabalharam com o contraponto de duas perspectivas para criar tensão, fazer emergir um suspense e mexer com expectativas. Aqui, criam-se laços com as duas personagens jogáveis e surge uma polarização sobre quem está certa, quem deve vencer ou viver. Assim como alguns elementos narrativos do primeiro jogo, o modo como se conta a história aqui não é novo. Entretanto, com o realismo gráfico e a imersão proposta por uma mídia essencialmente participativa, o videogame, essa dualidade de perspectivas ganha uma nova camada.

Se dissesse que jogar The Last Of Us Parte II é algo tranquilo, seria uma mentira. Isso não se deve apenas pela tensão de se colocar no papel de pessoas vivendo em um mundo perigoso e distópico, mas também pela escolha das personagens que somos “obrigados” a seguir. Há muita dor, revolta, compreensão envolvida. Quem se aventurar vai ser apresentado a um festival de sentimentos e muita angústia.

Tudo isso passa das personagens para o jogador, uma decisão narrativa fantástica que utiliza muito bem as propriedades que um jogo de videogame pode oferecer. Com toda certeza, ao final das quase 30h de jogatina, o jogador, além de cansado emocionalmente, vai querer debater sobre os rumos que a trama apresenta. E isso é fantástico. É como se as decisões morais ou as atitudes inescrupulosas tomadas no jogo não se atesem apenas ao mundo digital, mas vazassem para discussões acaloradas sobre quem está certo sobre o que.

Fonte: Acervo Pessoal / Ellie em The Last Of Us Part II — Modo Foto

No final, como já dito antes, é uma história de vingança, de ódio, de muita violência, mas também de amor. Sobretudo, além dos sentimentos, o poder das escolhas sobre nossas vidas, que invariavelmente recaem sobre nossos ombros. Certas atitudes podem não valer a pena e, às vezes, pode ser tarde demais para voltar atrás.

The Last of Us Part II está disponível para Playstation 4 em formatos físico e digital. Confira o trailer do game:

Eu sou Diego Souza Carlos, um jornalista cultural apaixonado por boas histórias, música, cinema e kare.

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Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.