Bixa Travesty é deliciosa penetração na vida de Linn da Quebrada
Premiado no Festival de Berlim, documentário está em exibição em circuito nacional
Há muitas questões quando se vê ou se pensa na imagem de Linn da Quebrada. Isso se deve primeiramente a criação heteronormativa da sociedade como um todo. Existe uma necessidade em definir o que o outro é de forma rotular e esse formato tende a ser binário quanto ao gênero. Em segundo, porque a artista é instigante e provocante até os últimos fios de cabelo. De qualquer forma, há um limbo social cheio de estereótipos onde mora a imagem das travestis. Existe um medo, curiosidade e preconceito acerca dessas pessoas, algo que as afastam de qualquer tipo de afeto, carinho e compreensão.
Bixa Travesty chega aos cinemas para fomentar debates que se relacionam diretamente com a vida de pessoas transgêneros, transsexuais e LGBTs no geral através do corpo, cara, peito e postura da artista. Em pouco mais de 1h15, é uma deliciosa penetração no universo lúdico, lírico e definitivamente bem humorado de Linn. O longa não apenas desmistifica o seu corpo político, o corpo da tal bicha travesti, como a consagra como uma das grandes artistas de sua época.
O documentário só chegou ao circuito nacional de forma definitiva em novembro de 2019. Algumas exibições ocorreram esparsas no último ano, mas a estreia oficial foi possível apenas agora. Vencedor do Prêmio Teddy, conhecido como “Urso de Ouro LGBT”, no Festival de Berlim em 2018, a direção é de Kiko Goifman e Claudia Priscilla.
Nos primeiros segundos adentramos ao filme com Linn segurando um objeto. Há uma ambiguidade inicial sobre o que é. Uma arma? Uma lanterna? Os dois? Logo, vemos um adereço que sustenta uma lanterna que percorre a Quebrada e estamos em Bixa Travesty. Na luz emitida há o nome do documentário. Esse letreiro improvisado percorre muros e casas da periferia da zona leste de São Paulo. A escolha em iniciar o filme dessa maneira pode ter dois grandes significados: a quebra da expectativa da juventude negra armada pelos olhos da polícia e sociedade; um paralelo entre sua origem, escolhas artísticas e tudo que influencia suas letras.
Apesar de se delimitar a um período específico, a narrativa se preocupa em apontar elementos sobre a construção de sua persona, do encontro consigo mesma como artista, das suas indagações como mulher trans, suas relações humanas e a crueza literal e figurativa da sua solidão. Não é tão claro, mas há certa cronologia na narrativa não linear do longa. Talvez uma escolha de roteiro, a impressão de uma grande colagem audiovisual seja proposital.
O conceito que dá nome ao documentário é discorrido com muito didatismo na provocante narração de Linn. Não há entretanto monotonia ou o erro de alguns sci-fi em ignorar a inteligência do espectador. Não. As informações passadas no documentário são dadas a fim de se construir a imagem, a voz, como, porque e o que é ser travesti, mesmo que não haja uma delimitação exata de quando isso começa ou acaba. E talvez essa seja a ideia, a fluidez do ser. O que é ainda mais curioso além de usar suas palavras e corpo como manifesto político, Linn ainda fala sobre a criação de um espaço de transição ou pertencimento enquanto travesti e gay afeminada já que não havia onde pertencer. E não há.
Se tratando do poderio imagético dos diretores, tons ora solares, ora gélidos são adotados no filme na busca da criação de um espaço intimista: a linguagem se mistura com a temática. Os closes em todo o corpo de Linn adentrando seu particular, por exemplo, pedem esse tipo de abordagem para se acostumar com a suavidade e poesia que ali se carrega. O interlúdio da sutileza, “quadrinhos de Linn e Jup”, frenesi e trechos de alguns shows extremamente potentes criam uma aura única para a película.
Descobre-se mais sobre sua vida, trajetória e música. É provocante de um jeito gostoso e cria empatia. As participações, ganhos do cenário musical e artístico dos últimos anos, compartilham de momentos preciosos. As interlocutores entre Linn e Jup do Bairro são rodeadas de ironia e cumplicidade, muito do que se vê no programa de ambas “TRANSmissão” do Canal Brasil. A amiga que sempre está ao seu lado ainda protagoniza momentos divertidos e delicados, sobre o afeto, solidão e caminhos que a definem como pessoa e artista.
Em um dos registros logo no início do filme, há um diálogo com sua mãe e amigas, a cantora Liniker inclusa. Simbólico, ali encontra-se muito do Brasil é e vive hoje. A conversa gira em torno da origem de sua família, relatos sobre a fome, o trabalho e a construção do amor próprio, do reconhecimento. O melhor, que fica nas mãos da direção e inserção no documentário é que a cena é filmada de forma simples, é uma conversa informal enquanto se faz strogonoff.
Entre idas e vindas, a produção enfim está em exibição em circuito do cinema nacional. Mesmo com as barreiras de classificação (+18) e do preconceito, a discussão foi lançada, a semente plantada e o fruto também. Pode-se dizer que o documentário é um pouco dos dois. Bixa Travesty não foi feito no governo Bolsonaro, mas ser exibido nessa época é significativo o suficiente para engrandecer ainda mais a resistência e existência de Linn da Quebrada. 1h15 é pouco, mas suficiente para entender que Linn é uma das artistas que marcarão a sua geração.
Eu sou Diego Souza Carlos, um jornalista cultural apaixonado por boas histórias, música e kare.
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