“AmarElo — É tudo pra ontem” e a potência do projeto transmídia de Emicida

Diego Souza Carlos
8 min readMar 16, 2021

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Documentário está disponível na Netflix

(Divulgação)

No último dia 08 de 2020, o cantor Emicida, em parceria com a Netflix, lançou o documentário sobre seu último disco AmarElo. Como celebração ao trabalho lançado há pouco mais de um ano, o rapper aproveita a produção para pontuar momentos históricos do caldeirão cultural brasileiro que tem o negro como protagonista.

Com quase duas horas de duração, “AmarElo — É tudo Pra ontem” poderia ser apenas uma registro sobre o processo de composição do álbum juntamente da apresentação das canções ecoadas no Theatro Municipal, onde fez os shows de estreia do projeto em novembro de 2019, mês da consciência negra. Poderia ser um filme documental convencional, se não fosse a mente perspicaz e criativa de Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, seu irmão Fióti, o cineasta Fred Ouro Preto e o coletivo que comandam, a Laboratório Fantasma.

Em maio de 2009, há pouco mais de uma década, o rapper lançou a mixtape “Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, até que Eu Cheguei Longe”. O impacto da frase que dá nome ao compilado de músicas é justo com a trajetória do artista e também responde o porquê a oportunidade do lançamento desse documentário é a culminação do desenvolvimento artístico do cantor paulistano.

A Netflix é o serviço de streaming mais assistido no Brasil e um dos maiores do mundo. Mesmo com a guerra dos streamings e a chegada do Disney+, a empresa ainda é a queridinha dos brasileiros. No último trimestre foram cerca de 50 milhões de acessos mensais na plataforma, apontam dados da Comscore, empresa que estuda os fluxos de internet e atuação nas variadas frentes do mercado digital.

Tendo em vista a grandeza desse conglomerado, a produção, que já chega importante musical e historicamente está disponível para inúmeros brasileiros conhecerem, com a narração do rapper, figuras importantes da história negra com foco na Semana de Arte Moderna, no ato de fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), a história do samba e as mãos que literalmente construíram São Paulo. O rapper foi além.

Entretanto, antes de chegar em dezembro de 2020 com seus 89 minutos de música, show e dados historiográficos, o artista lançou o disco, que floresceu nos podscasts “AmarElo Prisma” e “Filme Invisível”, alguns clipes e agora um documentário.

AmarElo — É Tudo Pra Ontem

“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. O filme documental começa seu primeiro ato, PLANTAR, com a potente frase sobre um dos principais espíritos e seres da Umbanda, religião de matriz africana praticada popularmente no Brasil.

Com “AmarElo: É tudo Pra Ontem”, Emicida abre e encerra um documentário que viaja pela história do povo negro no Brasil, da música brasileira e também sobre sua história para reafirmar que quando tudo vai contra a sua vida e a sua arte, de fato, é tudo pra ontem.

O projeto AmarElo teve início com a semente plantada em 30 de outubro de 2019, o nascimento do aguardado terceiro álbum de estúdio do rapper. Produzido pela Sony Music e o próprio Laboratório Fantasma, o álbum conta com 11 faixas.

Com uma nova proposta, mais voltado para novas sonoridades brasileiras, o samba, a MPB, o samba rock e o próprio rap, o cantor criou uma obra coerente, que conta uma história de forma sensível e potente. Em dado momento do filme, comenta que AmarElo é fruto do “neo-samba”, gênero que bebe da história de todos os estilos musicais que integram essa proposta e realiza uma mescla bem sucedida de brasilidades.

Mesmo que o próprio rap não seja deixado de lado, o cantor utiliza o disco para refletir, ora com calmaria, ora com genuína agressividade, sobre aspectos da vida, seja pelo prisma da maturidade, da paternidade, do local de fala do homem negro da periferia que clama pela justiça social.

Assim como afirma no documentário, “Principia”, música que abre o disco, retrata um sonho. Um sonho de luta, de garra. Com a participação de Fabiana Cozza, o Pastor Henrique & Pastoras Rosário, recados importantes são cantados em quase 6 minutos sobre religiosidade, ancestralidade e importância do outro e da união assim como cita Oswald de Andrade em outro ponto do vídeo, “Só o outro me interessa”.

Emicida canta em refrão “Tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis”, onde todo mundo se ajuda, onde o mundo é o ideal, mesmo que o sofrimento ainda exista. Ele sintetiza a ideia do álbum a partir do primeiro minuto: “A energia do disco inteiro é muito essa energia de fazer todo mundo se sentir um de novo, sabe? Se juntar através do que a gente tem de igual.”.

Nomeado Álbum do Ano pelo Prêmio Multishow de Música Brasileira e detentor do Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa de 2020, AmarElo não demora muito para mostrar sua essência.

Notável também por suas colaborações, são poucas as músicas em que Emicida tem exclusividade no vocal como em “Paisagem”. Entretanto, mesmo em momentos de solo, como em “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida”, além do coro de fundo, sua filha aparece em diversos momentos compartilhando de um momento pai e filha.

Somos chamados para a intimidade do cantor em um divertido momento, difícil de se esquecer, em que dá uma bronca na criança enquanto ela cai na gargalhada: “Não, chacoalho tem que ser tocado com vontade, entendeu? Só que sem risadinha, certo? Sem risadinha porque aqui é rap, mano. Onde o povo é brabo, entendeu? Povo é mau! Mau!”. O papo acontece antes do paulistano falar sobre a beleza do cotidiano, a poesia das coisas mundanas que devem ser notadas na sexta faixa do álbum.

Também somos convidados a entender a descobrir as mudanças que a paternidade proporciona no olhar do rapper sobre as “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”. No documentário, o samba-rock é gancho para falar sobre a origem da fusão do samba com o rap, que teve início com o duo The Brothers Rap na zona norte de São Paulo. No filme, somos apresentados a um breve histórico sobre essa mistura de gêneros a partir do samba.

Questionado sobre a escolha do Theatro Municipal para ser palco da estreia do seu novo projeto, Emicida conta no documentário que a decisão veio pelo histórico da construção dos principais prédios do centro de São Paulo que estão em volta do Municipal, além do próprio. Fala essa que se confirma não apenas no trabalho braçal, mas nas mentes por trás da arquitetura da cidade. Cita Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, artesão que, após receber sua carta de alforria, foi responsável pela mudança estilística da região durante o século XVIII.

Nesse ponto de “É Tudo Pra Ontem” fica imperceptível o teor historiográfico que o documentário propõe e carrega nos seus valiosos minutos. Da arquitetura, voltamos para o samba a partir da história dos Oito Batutas, grupo responsável pela popularização do samba no mundo a partir de 1922, ano da Semana de Arte Moderna. O evento que mudou a história da arte no Brasil ocorreu no mesmo Theatro Municipal que Emicida se apresentou quase cem anos depois. Emicida afirma: “O samba é o Brasil que deu certo. E não há vitória possível para esse país distante do samba.”.

Um dos momentos mais sensíveis da produção é a participação do baterista e compositor Wilson das Neves. Para muitos, uma das personificações do samba, o cantor era o ídolo de Emicida. Wilson das Neves faleceu em agosto de 2017, mas antes teve a oportunidade de criar uma bela relação com o rapper, participando de parte importante de sua trajetória musical. Após o falecimento, a música “Quem Tem um Amigo Tem Tudo”, que recebe colaboração de Zeca Pagodinho, é uma homenagem a Wilson, um dos grandes nomes da percussão brasileira

No início do segundo ato do filme, REGAR, Emicida já apresenta outros dois aspectos da história negra do Brasil: a presença dos pensadores e pensadoras negras na luta antirracista do país, começando por Lélia Gonsalez, e a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU).

Lélia foi ativista e política lutando contra o racismo, o machismo e o sexismo. Foi uma das primeiras pensadoras a falar sobre interseccionalidade, estudo sobre a sobreposição de identidades sociais. Ela esteve presente no ato inaugural do MNU, que aconteceu no dia 7 de julho de 1978 nas escadarias do Theatro Municipal durante o regime militar.

Quatro integrantes do movimento que participaram dessa data histórica da luta contra o racismo no Brasil, Regina, Milton, Adão e Levy estiveram presentes no show de estreia de AmarElo, no qual Emicida dedicou a música “Pantera Negra”, que apesar de não pertencer ao disco, tem uma letra que se encaixaria perfeitamente no projeto. Antes da canção, o cantor conta parte da trajetória dos integrantes do coletivo que se levantam e são ovacionados pela plateia. No mesmo lugar onde criaram uma ponte de resistência para a população negra da cidade e do país, na data, receberam homenagens pela importância histórica.

Continuando a aula que o documentário propõe, o terceiro ato começa com explicações sobre a origem e derivados da palavra negro. Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro, que utiliza a arte como ferramenta como o racismo. O ativista revelou uma das grandes atrizes do teatro, da TV e do cinema brasileiro: Ruth de Souza, que deveria participar de “Ismália” ao lado de Fernanda Montenegro lendo o poema que dá nome a música, de Alphonsus Guimarães.

Por fim, um dos principais singles de AmarElo, a música que dá nome ao álbum, é apresentada do documentário com a proposta de unir bandeiras a partir da junção de Emicida com a cantora Majur e Pabllo Vittar, que estão inseridas na sigla LGBTQI+. O uso do sample de Belchior carrega um importante simbolismo à canção, uma vez que o Brasil é um dos países que mais mata pessoas negras, homessexuais e transexuais: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.”.

Amarelo é a cor da felicidade. Ao trazer a identidade cultural brasileira e as ideias de amor e elo, AmarElo se torna um projeto único, sensível, delicado e com uma potência imensurável. Um documentário necessário em um momento em que, mesmo em durante uma pandemia, pessoas negras continuam sendo mortas pela violência policial. Ainda mais necessário ao entender que a vida é feita de ciclo e, como o próprio Emicida conta “Todas as chances de consertar os desencontros do passado moram no agora. Por isso, camarada, é que é tudo pra ontem”.

Eu sou Diego Souza Carlos, um jornalista cultural apaixonado por boas histórias, música, cinema e kare.

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Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.