A experiência de jogar The Last of Us durante a pandemia

Diego Souza Carlos
8 min readSep 7, 2020

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Exclusivo da Sony tem seus paralelos com a realidade

The Last of Us se tornou um dos grandes fenômenos dos videogames desde o seu lançamento. Quase um clássico instantâneo da geração, o exclusivo da Sony conta uma história cheia de elementos conhecidos de uma forma única. Seria apenas mais uma história distópica se não fosse a maneira criativa, carismática, violenta e arrebatadora como se desenrola.

Lançado em 14 de junho de 2013, o jogo se passa anos após o surto pandêmico de um fungo que toma conta do corpo das pessoas e as faz atacar violentamente outros seres humanos e animais. Há inspiração e embasamento científico, seria como se o fungo Cordyceps, que atinge apenas pequenos insetos, sofresse uma mutação e passasse a atingir seres humanos.

Com certos paralelos com zumbis, há uma diferenciação nesta história, o parasita manipula o cérebro do hospedeiro para sobreviver e não se trata necessariamente de um vírus que transforma pessoas em comedoras de cérebros. Mas as alegorias que histórias de zumbi podem trazer são empregadas no game, mostrando uma crise humanitária através de uma doença extremamente contagiosa. Esses novos monstros não são apenas fruto desse surto, mas também podem ser enxergados como uma entrega do ser humano à barbárie.

Alinhada a essa ideia, a violência empregada durante todo o gameplay se destina tanto aos estaladores ou corredores, tipos de infectados, mas também a gangues e comunidades que surgiram nesse período.

História

A trama gira em torno de Joel, um contrabandista que precisa fazer uma entrega para os Vagalumes, grupo de rebeldes, para receber um carregamento de armas. Tudo muda quando descobre o “conteúdo” de trabalho: Ellie, uma menina de 14 anos aparentemente sem nada de especial.

O jogo apresenta um caminho de destruição de Boston até Salt Lake City. Prédios em ruínas, ruas que deram lugar a rios e uma mistura caótica do urbano e do verde das plantas que cresceram nos anos após o “apocalipse”.

Assim como diversos outros pontos do jogo, o cenário conta sua história de forma singular. O modo foto, disponível no atalho L3 + R3, ajuda nessa imersão em um lugar que vimos em tantos filmes norte-americanos, só que agora tudo está devastado pela solidão, pelo desamparo. Alguns animais até surgem durante as andanças, há belas paisagens naturais emergindo, mas o maior sentimento é de desolação. Trata-se do fim do mundo como conhecemos.

Além das áreas mais amplas e abertas, entramos em residências, hotéis, prédios administrativos e até um salão de festas. O equilíbrio entre áreas abertas e lugares claustrofóbicos de alguns jogos de terror é feito de forma balanceada. Cartazes e faixas situam o jogador naquele mundo sempre com o rastro de destruição e o envelhecimento do que foi largado as pressas, ora celebrando a formatura de 2013 que nunca ocorreu (ou foi interrompida), ora apresentando qual seria o show de algum bar naquele final de semana.

Já em casas, é possível encontrar cartas ou diários que antigos moradores deixaram para amigos ou familiares. Isso expande a trama, traz uma sensação de que aquele mundo é paradoxalmente vivo e o expande. Esses toques são essenciais para criar uma camada mais crível através do cenários.

Enquanto atravessamos o país rumo ao destino final, ainda esbarramos com alguns personagens. Eles também compõem essa ampliação de dramaticidade à narrativa. São pessoas que nos dão exemplos múltiplos das possibilidades de vida após o fim da civilização. Encontramos Bill, que tem uma cidade só para si e mesmo nesse contexto é amargurado por uma briga com o companheiro com quem passava seus dias.

Encontramos os irmãos Henry e Sam também, que estão em busca de comunidades que estejam se reerguendo. Há um paralelo com a relação de Ellie e Joel no sentido da fraternidade, em que há uma figura responsável e o seu protegido É nessa parte da história que também se encara pela primeira vez os limites da sanidade e pressão que pode-se suportar em determinadas condições. São personagens que contribuem com a história, dinamizam esse universo e propõem alguns efeitos da calamidade sobre suas humanidades.

Joel e Ellie

O grande elo de The Last Of Us é a construção do relacionamento de Ellie e Joel. Ambos foram retirados a força de seus mundos de maneira abrupta e cruel. A jovem garota já nasceu em um mundo destruído. Ela descobre ser a última esperança da humanidade quando sofre um acidente com sua amiga Riley. Já Joel, perdeu sua filha no dia do surto. Ao fugir com a ajuda de seu irmão vê sua herdeira morrer em seus braços não após um ataque violento dos monstros, mas baleada por um militar. Ambos os personagens compartilham uma solidão e desolação sobre o futuro, o grande trunfo dessa história está no desenvolvimento dessa relação.

Essa dinâmica é bem explorada tanto no gameplay com vários desafios compartilhados, em que há a necessidade do co-op, como nas cutscenes, que assim como o desing do game num todo são um show e deleite no campo gráfico. A escolha de usar o máximo de tempo de jogo para o desenvolvimento da história e consequentemente da relação de Joel e Ellie é um acerto enorme, em que há equilíbrio entre ação, momentos de furtividade e cenas com altas cargas de emoção. Isso faz com que uma trama cheia de clichês se torne tão cativante. Há cuidado no roteiro para potencializar o que um jogo de videogame tem de melhor: o mergulho e a imersão em um universo.

DLC — Left Behind

Meses depois da estreia, The Last Of Us ganhou uma expansão colocando o jogador na pele de Ellie. A trama curta, porém intensa, se passa durante um trecho do game original em que Joel se fere gravemente e a jovem vai atrás de suprimentos para ajudá-lo a sobreviver.

Com certos momentos tensos ora enfrentando hordas de inimigos, ora utilizando estratégias de furtividade, o trecho ainda conta com um flashback que mostra o dia em que a garota sofreu o acidente que determina a história do jogo.

É uma perfeita expansão do universo e não deve ser pensado apenas no aspecto técnico. Essa DLC foi claramente feita para abrir caminhos futuros para a franquia, assim como incrementar momentos que apenas são citados na campanha do original. Menos focada na ação, com muito stelf e cenas emblemáticas de Ellie com sua amiga de infância Riley, Left Behind foi criado para entregar uma nova imersão na história.

No trecho do flashback onde se está com Riley, a sensação é de assistir um curta interativo. As garotas visitam uma loja de fantasias, fazem guerra de armas d’água e fogem quando a coisa aperta. Tudo muito simples e prático. Há inclusive a chance de tirar fotos e jogar no fliperama. Trata-se um momento único em que Ellie descobre sentimentos e tem uma experiência memorável com a melhor amiga. Com mais leveza, mas sem fugir muito do tom de The Last Of Us, é essencial para quem gostou da trama principal.

O apocalipse da ficção vs Pandemia do Novo Coronavírus

Em 2020 fomos pegos de surpresa com o surto da pandemia do novo coronavírus. A forma como vivemos até março deste ano não existe mais e, mesmo após uma vacina ou tratamento, terá a marca dos dias de isolamento social e medo coletivo dessa ameaça invisível.

Ao estar isolado, fazendo a quarentena, jogar The Last Of Us se tornou um desafio. Além de suas dificuldades de jogo, a história tem seus paralelos com a nossa realidade. Existem tantos movimentos artísticos que simulam um fim do mundo ou um futuro distópico, que nos acostumamos (e sempre esperamos) que essas histórias fizessem parte apenas do mundo da ficção.

Ao ligar o meu Playstation 4 e descobrir pouco a pouco como a vida de Joel se tornou após a destruição da civilização por causa de um fungo altamente contagioso foi uma experiência densa. Ver que as pessoas que viviam naquele mundo imaginavam ser algo rápido ou que não deveriam levar tão a sério (antes de suas mortes) foi como um soco no estômago ao olhar ao meu redor.

Acredito que a preocupação em focar em muitos detalhes, os cenários, cartas e diálogos entre os personagens foi decisivo para que um pequeno medo surgisse: a possibilidade da pandemia deste mundo descolado da ficção não ter fim e chegar a estados críticos como o fim das nações e a completa barbárie.

Eis um dos efeitos mais interessantes a serem observados: a relação contínua e dependente da vida e da arte. Mais um motivo para repensar como encaramos algumas obras, sejam filmes, jogos, livros, entre outros. A cultura tem esse poder de criar conexões e tocar as pessoas. Seja pelo medo, seja pela dor, seja pela memória. Dessa forma, encerro o texto acreditando que, mesmo não sendo um dos melhores momentos para se jogar The Last Of Us pela primeira vez, demorei demais para descobrir o potencial narrativo dos videogames. E olha que nem tinha jogado a Parte II ainda…

The Last of Us está disponível para Playstation 3 e Playstation 4, em uma versão remasterizada que já inclui o DLC. A sequência é um game exclusivo do PS4.

Eu sou Diego Souza Carlos, um jornalista cultural apaixonado por boas histórias, música e kare.

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Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.