É PORQUE EU MERECI: O tal mito da meritocracia

Diego Souza Carlos
4 min readNov 12, 2018

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Uma das maiores alegrias de alguém que sabe aproveitar o melhor que a internet pode oferecer é o conhecimento. Questionar modismos e costumes dentro de uma sociedade é ter a satisfação de desconstruir muita coisa desnecessária. Discursos que agridem a vida do outro e a nossa, assim como reforçam sistemas opressores.

Acredito que muita gente foi impactada pela Barbie Fascista e seus exemplos da vida real. Para os que não foram, algumas pages:

https://www.facebook.com/barbiefascista/

https://twitter.com/barbiefascista_

Dentro das falas mais recorrentes da personagem as que tem meritocracia como contexto merecem destaque. O título desse texto foi retirado diretamente de um áudio real (com direito a versão funk) em que uma garota (não se sabe de onde ou de qual idade) tem um surto histérico porque é questionada sobre privilégios. Inclusive, a palavra privilégio hoje ganha uma roupagem um pouco mais complexa do que ter a boa sorte/alegria por algo e sim em ter benefícios que diferenciam pontos de partida de uma pessoa para outra.

Por exemplo, nascer em uma família rica é um privilégio em comparação a quem teve uma vida pobre. Indo para onde queremos chegar, ganhar um emprego do papai é um privilégio enquanto muitas pessoas saem do zero para conquistar algum trabalho. Indo um pouco mais além, um homem hetero, branco e cis tem muito mais oportunidades na sociedade do que qualquer outra pessoa que não esteja dentro desse padrão. Isso se dá por inúmeros fatores. Principalmente pela criação eurocêntrica ou débitos históricos como a escravidão (negra e indígena). Por causa do patriarcado e machismo que deixou mulheres às escuras em questões de direitos e tantos outros costumes sociais. Numa era globalizada também pelo que recebemos da mídia internacional como o corpo ideal, o jeito correto de se vestir e diversos outras pontas soltas nesses poucos séculos de vida.

É ruim ter privilégios? Claro que não! Quem não gostaria de ter acesso a condições financeiras ou não ser excluído de uma entrevista de emprego apenas pela cor da sua pele, não é mesmo? Mas é importante compreendê-los. Ser responsável por eles. Empatia também colabora com isso. Alias, a empatia é um processo completamente necessário para combater a desigualdade e desmitificar o termo. Se colocar na pele do outro e AGIR sobre o que os difere em questão de acessibilidade é uma ótima sugestão.

A relação entre privilégios e meritocracia é justamente entender que cada ser humano parte de um ponto específico. Merecimento é algo muito complexo e subjetivo. O ideal seria viver em uma sociedade justa e igualitária, mas enquanto não há o alcance desse sonho são necessárias medidas paliativas para amenizar o efeito histórico do nosso país. As cotas raciais e sociais são um excelente exemplo disso. Não é afirmar que negros são inferiores a brancos, é entender que a população negra é fragilizada historicamente. Uma herança vinda diretamente da escravidão que ganhou traços na marginalização dessas pessoas na sociedade contemporânea. Consequências, amore. Toda ação gera uma reação. Surreal como parte de cabeças teoricamente pensantes que determinam que uma atitude é certa e isso se torna uma cultura predominante por tanto tempo. No caso do Brasil, mais de 500 anos.

Também não é afirmar que pessoas pobres são burras, mas compreender que as oportunidades não são as mesmas. A Kelly que nasceu em berço de ouro pode ter se esforçado para conseguir o diploma, o emprego, a condição atual de vida dela. Ótimo para ela! Mas entendamos que quem enfrenta a fome, a escolha entre um almoço ou janta, a dificuldade em transitar pela cidade, a falta de saneamento básico tem várias casas a se ultrapassar até chegar no ponto da Kelly. Não?

Dessa forma, quando vemos uma pessoa gritar que mereceu estar lá porque manteve o emprego que o papi deu a ela vemos a gravidade da consciência coletiva de boa parte dos brasileiros. Bizarro como esse discurso é dito por massas também. O proletariado alienado compra essa briga em que ele mesmo sairá perdendo. E isso não é culpa dele. Trabalhos pesados, lugares distantes, salários baixos, o trabalhador só quer o descanso do guerreiro. Não há tempo para pensar na estrutura socioeconômica do país quando existem bocas para se alimentar.

Uma importante mudança no mindset é procurar atingir aqueles que não vivem em situação desfavorável ou que não tem empatia com os demais. Fazer as pessoas repensarem suas próprias origens e as dos demais. Digo isso para quem lê esse texto, pois se chegou até aqui também é cheio de privilégios, baby. Internet, alfabetização, me conhecer…A mudança neste tipo de pensamento ajuda a desconstruir valores, conceitos e ideias que nos oprimem. A reciclagem e autocrítica são alternativas que devem acompanhar uma vida toda, fluxo constante de questionamentos. Revolução Humana! Seria e será lindo quando isso se tornar parte da nossa cultura. Enquanto a militância não atinge todos, ficamos com memes e registros como esse áudio. Seria apenas cômico se não fosse trágico.

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Diego Souza Carlos
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Written by Diego Souza Carlos

Jornalista cultural, criador de conteúdo e social media. Pós-graduando no CELACC/USP. Escrevo sobre cultura pop e estou sempre em busca de novas histórias.

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